1-As Causas da Expansão Marítima
Desde cedo, aprendemos em casa ou na escola que o Brasil foi descoberto por Pedro
Álvares Cabral em abril de 1500. Esse fato constitui um dos episódios de expansão marítima
portuguesa, iniciada em princípios do século XV. Para entendê-la, devemos começar pelas
transformações ocorridas na Europa Ocidental, a partir de uma data situada em torno de 1150.
Foi nessa época que a Europa, nascida das ruínas do Império Romano e da presença dos
chamados povos bárbaros, começou pouco a pouco a se modificar, pela expansão da
agricultura e do comércio.
Que Europa era essa?
Uma região esmagadoramente rural, onde as cidades haviam regredido e as trocas
econômicas diminuído muito, embora sem desaparecerem completamente. Ao mesmo tempo,
o poder político se fragmentara e se descentralizara, não obstante o mito do Império ainda
proporcionar certa coerência cultural e mesmo legal a toda a área.
A expansão agrícola foi possível graças à abertura de novas regiões cultivadas, com a
derrubada de florestas, a secagem de pântanos e o incentivo da expansão comercial. Esta
resultou de vários fatores. Dentre eles, a crescente existência de produtos agrícolas não
consumidos nos grandes domínios rurais que constituíam excedentes econômicos passíveis de
troca. Outros fatores foram a especialização de funções, demandando a compra de bens não
produzidos em cada domínio rural, e a busca de produtos destinados ao consumo de luxo da
aristocracia. As cidades começaram a crescer e a se transformar em ilhas de relativa liberdade,
reunindo artesãos, comerciantes e mesmo antigos servos que tentavam encontrar aí uma
alternativa de vida, fugindo dos campos.
A partir do século XIII, foram-se definindo por uma série de batalhas algumas fronteiras
da Europa que, no caso da França, da Inglaterra e da Espanha, permanecem aproximadamente
as mesmas até hoje. Dentro das fronteiras foi nascendo o Estado como uma organização
política centralizada, cuja figura dominante - o príncipe - e a burocracia em que se apoiava
tomaram contornos próprios que não se confundiam com os grupos sociais mesmo os mais
privilegiados, como a nobreza. Esse processo durou séculos e alcançou seu ponto decisivo
entre 1450 e 1550.
Também ocorreu uma expansão geográfica da Europa cristã, antecessora cm outras
condições da expansão marítima iniciada no século XV, pela reconquista de territórios ou a
ocupação de novos espaços. A Península Ibérica foi sendo retomada dos mouros; o
Mediterrâneo deixou de ser um "lago árabe", onde os europeus não conseguiam sequer
colocar um barquinho; os cruzados ocuparam Chipre, a Palestina, a Síria, Creta e as ilhas do
Mar Egeu; no noroeste da Europa, houve expansão inglesa na direção do País de Gales, da
Escócia e da Irlanda; no leste europeu, alemães e escandinavos conquistaram as terras do
Báltico e as habitadas pelos eslavos.
Mas todo esse avanço não foi, como se poderia pensar, um impulso irresistível, sem
marchas e contramarchas, rumo aos tempos modernos. Pelo contrário, perdeu o ímpeto e
uma crise profunda se instalou, aí pelo início do século XIV. Nessa época, uma exploração mais
intensa dos camponeses pro¬vocou várias rebeliões ao longo dos anos, em lugares tão
diversos como o norte da Itália na virada do século XIV, a Dinamarca (1340) e a França (1358).
A nobreza dividiu-se internamente em uma série de guerras. Houve declínio da população,
escassez de alimentos, epidemias, das quais a mais famosa foi a Peste Negra, que grassou
entre 1347 e 1351. Grandes extensões de terra ocupadas por camponeses foram abandonadas
e aldeias inteiras desapareceram. Esse processo ocorreu, tanto em conseqüência da crise
como do reagrupamento de terras por parte de grandes senhores que visaram à sua
exploração comercial, em novos moldes. Houve também um retrocesso da expansão
territorial: os mouros permaneceram em Granada, os cruzados foram expulsos do Oriente
Médio, os mongóis invadiram a planície russa etc.
As discussões mais significativas sobre as causas da crise têm salientado o impacto das
epidemias e as características do meio físico, como as variações do clima e as condições do
solo, mas integram esses fatores em uma explicação maior. Há historiadores que sustentam
que, dadas as limitações inerentes à organização social feudal, não havia suficiente
reinvestimento de lucros na agricultura de modo a aumentar significativamente a
produtividade; com isso, os bens disponíveis se restringiram, levando às guerras entre
senhores e camponeses e, em uma seqüência de fatos, à estagnação. Essa explicação, na
aparência distante do nosso tema, é importante porque, segundo ela, a única saída para se
tirar a Europa Ocidental da crise seria expandir novamente a base geográfica e de população a
ser explorada. Mas isso não quer dizer que fatalmente, em meio à crise, um pequeno país do
sudoeste da Europa deveria lançar-se no que viria a ser uma grande aventura marítima.
Por que Portugal iniciou pioneiramente a expansão, no começo do século XV, quase cem
anos antes que Colombo, enviado pelos espanhóis, chegasse às terras da América?
A resposta não é simples, pois uma série de fatores devem ser considerados. O próprio
peso atribuído a cada um deles pelos historiadores tem variado, seja pela aquisição de novos
conhecimentos dos fatos da época, seja pela contínua mudança de concepções sobre o que é
mais ou menos importante para se explicar o processo histórico. Por exemplo, sem ignorar o
papel do Infante Dom Henrique (1394-1460) e de sua lendária Escola de Sagres no incentivo à
expansão, hoje não se acredita que esses fatos tenham sido tão relevantes quanto se pensava
até alguns anos atrás.
Para começar, Portugal se afirmava no conjunto da Europa como um país autônomo, com
tendência a voltar-se para fora. Os portugueses já tinham experiência, acumulada ao longo dos
séculos XIII e XIV, no comércio de longa distância, embora não se comparassem ainda a
venezianos e genoveses, a quem iriam ultrapassar. Aliás, antes de os portugueses assumirem o
controle de seu comércio internacional, os genoveses investiram na sua expansão,
transformando Lisboa em um grande centro mercantil sob sua hegemonia. A experiência
comercial foi facilitada também pelo envolvimento econômico de Portugal com o mundo
islâmico do Mediterrâneo, onde o avanço das trocas pode ser medido pela crescente utilização
da moeda como meio de pagamento. Sem dúvida, a atração para o mar foi incentivada pela
posição geográfica do país, próximo às ilhas do Atlântico e à costa da África. Dada a tecnologia
da época, era importante contar com correntes marítimas favoráveis, e elas começavam
exatamente nos portos portugueses ou nos situados no sudoeste da Espanha.
Mas há outros fatores da história política portuguesa tão ou mais importantes do que os
já citados. Portugal não escapou à crise geral do ocidente da Europa. Entretanto, enfrentou-a
em condições políticas melhores do que a de outros reinos. Durante todo o século XV, Portugal
foi um reino unificado e menos sujeito a convulsões e disputas, contrastando com a França, a
Inglaterra, a Espanha e a Itália, todas envolvidas em guerras e complicações dinásticas. A
monarquia portuguesa consolidou-se através de uma história que teve um dos seus pontos
mais significativos na revolução de 1383-1385. A partir de uma disputa cm torno da sucessão
ao trono português, a burguesia comercial de Lisboa se revoltou. Seguiu-se uma grande
sublevação popular, a "revolta do povo miúdo", no dizer do cronista Fernão Lopes. A revolução
era semelhante a outros acontecimentos que agitaram o ocidente europeu na mesma época,
mas teve um desfecho diferente das revoltas camponesas esmagadas em outros países pelos
grandes senhores. O problema da sucessão dinástica confundiu-se com uma guerra de
independência, quando o rei de Castela, apoiado pela grande nobreza lusa, entrou em Portugal
para assumir a regência do trono. No confronto, firmaram-se ao mesmo tempo a
independência portuguesa e a ascensão ao poder da figura central da revolução, Dom João,
conhecido como Mestre de Avis, filho bastardo do Rei Pedro I.
Embora alguns historiadores considerem a revolução de 1383 uma revolução burguesa, o
fato importante está em que ela reforçou e centralizou o poder monárquico, a partir da
política posta em prática pelo Mestre de Avis. Em torno dele, foram se reagrupando os vários
setores sociais influentes da sociedade portuguesa: a nobreza, os comerciantes, a burocracia
nascente. Esse é um ponto fundamental na discussão sobre as razões da expansão portuguesa.
Isso porque, nas condições da época, era o Estado, ou mais propriamente a Coroa, quem podia
se transformar em um grande empreendedor, se alcançasse as condições de força e
estabilidade para tanto.
Por último, lembremos que, no início do século XV, a expansão correspondia aos
interesses diversos das classes, grupos sociais e instituições que compunham a sociedade
portuguesa. Para os comerciantes era a perspectiva de um bom negócio; para o rei era a
oportunidade de criar novas fontes de receita em uma época em que os rendimentos da Coroa
tinham diminuído muito, além de ser uma boa forma de ocupar os nobres e motivo de
prestígio; para os nobres e os membros da Igreja, servir ao rei ou servir a Deus cristianizando
"povos bárbaros" resultava em recompensas e em cargos cada vez mais difíceis de conseguir,
nos estreitos quadros da Metrópole; para o povo, lançar-se ao mar significava sobretudo
emigrar, tentar uma vida melhor, fugir de um sistema de opressões. Dessa convergência de
interesses só ficavam de fora os empresários agrícolas, para quem a saída de braços do país
provocava o encarecimento da mão-de-obra. Daí a expansão ter-se convertido em uma
espécie de grande projeto nacional, ao qual todos, ou quase todos, aderiram e que atravessou
os séculos.
Boris Fausto